Acessibilidade Sem Barreiras: Entrevista com Susana Godoy

Por Giovana Amorim/Edição e revisão: Lucinéa Villela

“A limitação e a deficiência são uma questão daquele ser humano, não são o ser humano.”

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Foto da 20ª Mostra Arte sem Barreiras + Festival Assim Vivemos

(Lucinéa Villela, Susana Godoy, Lara Pozzobom e Bell Machado)

No mês de outubro de 2014, ocorreu em Bauru a 20ª mostra de Arte Sem Barreiras + Festival Assim Vivemos que, apoiada pela Secretaria de Cultura, buscou promover a integração, disponibilização e debates sobre as ferramentas e recursos usados para melhorar a vivência diária e geral das pessoas com as mais variadas deficiências e estilos de vida .

Temos vivenciado no Brasil um constante crescimento nos debates e eventos sobre acessibilidade. Em 2014 foi criado o primeiro curso de Especialização em Audiodescriçãonaa Universidade Federal de Juiz de Fora, houve a primeira edição do evento TOM-SP e diversas outras atividades com a temática de acessibilidade.

Para compreendermos mais sobre eventos na área de acessibilidade, o Blog do MATAV entrevistou Susana Godoy, a agente cultural e diretora da divisão de ação cultural da Secretaria Municipal de Cultura de Bauru. Ela nos relatou um pouco sobre os festivais, as parcerias e o mundo acessível que, infelizmente, ainda não é aquele em que vivemos; mesmo que só por enquanto. Confira abaixo!

MATAV: Você pode falar um pouco sobre a Mostra Arte sem Barreiras e o Festival Assim Vivemos? Como tudo isso chegou até Bauru?

Susana: A mostra Arte Sem Barreiras é um evento que a gente realiza há vinte anos ininterruptamente. É um evento que começou com realização da Very Special Arts, uma organização americana que está no Brasil desde a década de 70. Em Bauru, há vinte anos, aconteceu a primeira mostra de Arte sem Barreiras realizada por essa entidade que na época tinha como coordenador o Dorival Vieira. A Secretaria de Cultura foi parceira naquela ocasião.

Conforme foi crescendo a atividade, a Secretaria foi sendo corealizadora e, desde que entrou para o calendário oficial com a Lei Municipal de 2004, a mostra vem sendo uma realização da Secretaria de Cultura de Bauru. Infelizmente, a organização foi sofrendo uma desmobilização no país, pouquíssimas cidades ainda  realizam hoje esse evento.

Durante dois anos, o  Arte sem Barreiras esteve vinculado à Funarte, que tinha um edital especial para que artistas com deficiência pudessem participar, isso alavancou a questão profissional do Arte Sem Barreiras. Em 2013, tivemos um contato maior com a UNESP por meio da professora Lucinéa Villela, que participou conosco no Arte sem Barreiras/2013 e nos apresentou principalmente a audiodescrição. Na ocasião, passamos alguns curtas e outros materiais que possuiam acessibilidade.

Em 2014, convidamos a professora para a organização e curadoria da Mostra. A Lucinéa, já conhecedora do Festival Assim Vivemos propôs fazer o contato com a produtora Lara Pozzobon e trazer alguns filmes do festival para cá. Nós demos carta branca, deu certo fazer o contato e no fim agregamos um valor imenso à mostra, foi uma oportunidade fundamental para que a gente pudesse enriquecer a programação e tratar dessa ferramenta fantástica que é a audiodescrição.

 

MATAV: Na época de criação da Mostra, há vinte anos, o contexto era de rejeição da sociedade aos deficientes de qualquer tipo. Qual a diferença entre passado e presente nesse sentido?

 

Susana: A diferença é mesmo gritante. Ainda temos que caminhar muito, mas é muito diferente. Há vinte anos a pessoa com deficiência estava muito segregada. Hoje se fala muito de deficiência como uma limitação que se deve transpor, mas antigamente o deficiente era visto só pela sua limitação. Uma pessoa que devia ser segregada, que deveria estar num ambiente específico. Eu me lembro de quando morava em São Paulo, há muito tempo e passava em frente a AACD, uma instituição que considero de extrema importância, e pensava “ainda bem que tem pessoas que cuidam deles”. Eu não tive contato com deficientes quando criança, nem na escola nem em outros espaços. Elas realmente estavam segregadas. A diferença é que hoje eu vejo meus filhos na escola em contato com pessoas com diversas deficiências.

A convivência é essencial, e ao longo desse tempo as pessoas passaram a ter essa convivência. Os deficientes passaram a estar na escola, frequentar o mercado de trabalho, a ocupar cargos públicos, exigir políticas públicas. Passaram a pensar “se eu gosto de fazer essas coisas e posso fazê-las, porque não?”

A limitação e a deficiência são questões daquele ser humano, não são o ser humano. Uma área fundamental para essa mudança ao longo do tempo, que fez a sociedade olhar de outra forma para essa questão, foi a de esportes. Um grande exemplo que temos é o esportista Daniel Dias, sem dois braços e uma perna ele nada e quebra recordes, enquanto eu não sei nem nadar, nós questionamos o que é deficiência e o que é eficiência. Quem é o deficiente na verdade?

Nós não podemos limitar o ser humano a uma questão. Eu, por exemplo, não vejo bem e preciso usar óculos em determinados momentos; é o mesmo caso de quem utiliza uma prótese no braço ou na perna, ou que usa ferramentas como o recurso da audiodescrição ou do braile. Tivemos a oportunidade de ver o Thomas no Arte Sem Barreiras, ele ficou cego depois de levar uma pedrada nos olhos e é marceneiro. As pessoas diziam que ele ia se cortar em vez de ver como isso é bacana. Elas colocam a limitação em primeiro lugar.

Por isso é importante conviver e perceber que todos nós temos limitações, mas que a pessoa do lado também tem seus direitos. A convivência é aprender a respeitar o outro, a se integrar com ele. Por isso, a questão das entidades especificas é muito delicada e importante. Segregar em entidades é difícil, embora nas entidades possa haver um preparo maior para a sociedade. Ainda assim, a pessoa com deficiência será mais um ser humano no ambiente para agregar conhecimento, seja na escola, seja no trabalho, seja no ambiente público. Por isso, para mim, a convivência é fundamental.

MATAV: O que se pode dizer sobre os projetos criados na universidade pública a respeito da acessibilidade?

Susana: Eu estudei na Universidade de Bauru (UB) que depois foi encampada pela UNESP e já havia essa problemática que me preocupava como estudante e me preocupa ainda hoje. Acho que por ser uma universidade pública nós temos que ter essa relação com a sociedade. Mas não podemos fazer com que a sociedade seja apenas um objeto de estudo. Às vezes nós temos, não por má intenção talvez, propostas ótimas de projetos, projetos muito bonitos academicamente, que vão agregar muito ao cargo ou ao currículo, mas que na verdade não se sabe se é o que a sociedade quer.

Quando eu era estudante do curso de Relações Públicas, entrei na universidade querendo mudar o mundo. Mas as pessoas tinham muito preconceito. Nós tínhamos duas colegas de Ibitinga que foram bordadeiras e na época esse trabalho sofria muita exploração. Tivemos a ideia de criar o sindicato das bordadeiras. Achamos que de imediato as pessoas fossem amar: quatro estudantes salvadoras! Mas foi uma surpresa quando começamos a pesquisar e vimos que as pessoas não queriam um sindicato, diziam que não precisavam. Nós trabalhávamos com comunicação, tínhamos o público das bordadeiras, mas também os donos das fábricas. Ficamos um pouco tristes com a rejeição da nossa ideia, só que depois de muito choro nós entendemos que era muita pretensão da nossa parte fazer o projeto achando que ele era maravilhoso sem escutar o outro lado. Depois mudamos de tática e passamos a conversar com as bordadeiras e, no fim, o sindicato foi fundado, as meninas foram para Nova York apresentar o projeto e uma delas até presidiu o sindicato. Isso foi incrível para nós, porque nós conseguimos interferir na sociedade de modo que o projeto foi tomado e aceito por ela.

É isso que vejo da universidade. Ela tem que interferir, mas para criar. Nós temos que estar mais preocupados com essa questão: a universidade tem o poder da pesquisa, mas também o poder de transformar, dialogar com a sociedade. Essa sementinha que pode ser plantada pelo meio acadêmico e da pesquisa vale mais do que qualquer título ou cargo possíveis.

 

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